Porque o Argumento Ontológico não merece sair da mesa das crianças

Prólogo

Sim, esta é mais uma resposta a um artigo do NAPEC. Mas antes de qualquer coisa, devo fazer uma observação. Grupos de apologética não são voltados para os incrédulos e frequentemente escrevem somente para os crentes, numa linguagem que só eles entendem ou sobre assuntos que só interessa a eles. A não ser que seja convidado, jamais comentarei sobre algo que diga respeito a doutrinas periféricas à apologética em si. Mas aqui estou novamente comentando, ou rebatendo, um artigo de autoria do Djesniel Krause no site do NAPEC.

O que poderia ser visto como perseguição espero que seja visto como elogio. O fato de eu poder contra-argumentar significa que se trata de algo que no mínimo é inteligível, que traz informações razoavelmente claras e mostra alguma disposição em analisar alegações. O artigo do Djesniel consegue apresentar o Argumento Ontológico de uma forma muito clara, quer isso seja uma vantagem ou não, e é essa clareza na exposição que permite pelo menos tentar um diálogo. E eu ainda não abordei esse argumento aqui, então tenho mais um motivo para responder.

Sinto um cheiro estranho, mas será?

O Djesniel apresenta o argumento primeiro na forma original, de Anselmo, que realmente é bastante confusa mesmo para um iniciado em Filosofia como eu. E apresenta algumas reações:

Até mesmo o biólogo Richard Dawkins, citando Bertrand Russel confessa que “é mais fácil sentir a convicção de que [o argumento ontológico] deve ser falacioso que localizar onde exatamente está a falácia”

Dawkins é um grande biólogo e divulgador de ciência, mas não tenho convicção na sua capacidade de avaliar apropriadamente um argumento que só se baseia no pensamento. Seria como pedir para alguém traduzir o que o Deepak Chopra fala. Mas existe essa sensação de que há algo errado. E essa foi uma das coisas que eu adorei no artigo: ele dá uma forma muito mais clara do argumento, em que pode-se enxergar perfeitamente onde estão os problemas.

Para auxiliar na compreensão do argumento, Alvin Plantinga, já mencionado anteriormente, o esquematizou de forma bastante didática conforme segue:

1. Deus existe no entendimento, mas não na realidade;

2. A existência na realidade é mais grandiosa do que a existência apenas no entendimento;

3. A existência de Deus na realidade é concebível;

4. Se Deus existir na realidade, então seria mais grandioso do que é;

5. É concebível que exista um ser mais grandioso do que Deus

6. É concebível que exista um ser mais grandioso do que o ser mais grandioso tal que nada maior pode ser concebido.

Dado o claro absurdo a que se chega na conclusão (6), que é autocontraditória, pode-se afirmar que:

7. É falso que Deus exista no entendimento, mas não na realidade.

Temos aqui  7 afirmações enumeradas, todas elas com seus próprios erros. Na tentativa de não cansar o leitor, tentarei sem bem suscinto em descrever cada um dos problemas, e posso detalhar melhor se for conveniente — comentar é gratuito e nada referente ao que digo é censurado.

Falsa dicotomia

1. Deus existe no entendimento, mas não na realidade;

O que impediria Deus, ou qualquer outra coisa, de existir no entendimento e na realidade? Por que tem que ser ou? Alguém pode criar um conceito a meu respeito, imaginar minhas reações, conceber interações comigo, isto é, eu posso existir no entendimento de alguém, e ao mesmo tempo ser capaz de interagir com essa pessoa.

A primeira afirmação do argumento parece divergir da epistemologia correta, que se propõe formular um modelo mental a partir dos fatos observáveis ao imaginar um fato e aceitá-lo antes de avaliar se podemos esperar alguma observação a partir do modelo. Como eu posso determinar se Harry Potter existe na realidade também, e não só na imaginação?

Non sequitur

2. A existência na realidade é mais grandiosa do que a existência apenas no entendimento;

3. A existência de Deus na realidade é concebível;

4. Se Deus existir na realidade, então seria mais grandioso do que é;

5. É concebível que exista um ser mais grandioso do que Deus

Donde se conclui que a existência na realidade é mais grandiosa do que a existência no entendimento? Se alguém afirmar o contrário, como podemos saber quem está correto? Da mesma forma, poder-se-ia dizer que a existência de Deus na realidade é inconcebível; como um ser inifinito poderia existir em um conjunto finito de dimensões (a realidade)? Como um ser onisciente seria possível no mundo real? E se os pontos 2 e 3 são infundados, 4 também o é.

Finalmente, se eu concebo algo maior do que o máximo anteriormente concebido, a conclusão a que se chega é de que eu estava errado da primeira vez. Se eu concebo algo mais grandioso do que Deus, o que eu imaginei que fosse Deus estava errado. Se eu acho que um pacote de arroz de 5kg é o maior que existe e dou de cara com uma saca de 60kg, eu simplesmente corrijo a minha referência de tamanho máximo.

Equívoco

6. É concebível que exista um ser mais grandioso do que o ser mais grandioso tal que nada maior pode ser concebido.

O erro aqui é semelhante ao truque em álgebra para mostrar que 2=1. Plantinga (ou Anselmo) usa uma definição inválida para fazer uma afirmação absurda a fim de concluir o contrário dela. Deus é definido como o ser mais grandioso. Se podemos imaginar algo maior que Deus, então esse é Deus e não o Deus anterior. Até pouco tempo atrás meu filho não conseguia conceber um número maior que mil. Agora que ele consegue, significa que existe um número que é maior que todos? Ou que sequer existe um limite para números maiores? Ou para o matemático de plantão, a imagem de f(x) = x não tem limite com o domínio no conjunto dos números naturais. Se a função do que é ser grandioso não tem limite, então também sempre haverá algo maior do que o maior número concebível. Analogamente, sempre haverá algo mais grandioso do que a sua concepção de Deus até que se estabeleça um limite de grandiosidade. Mas aí teríamos que afirmar que há um limite para Deus. E este beco sem saída não foi criado por mim.

E se o argumento estiver correto?

Bem, digamos que o Argumento Ontológico não tem uma falhazinha e mereça ir para a mesa dos adultos. Se eu conseguir conceber algo mais grandioso do que Deus, o deus cristão, então fica demonstrado que o deus cristão não é Deus.

Mas o que é ser grandioso?

Em nenhum momento foi apresentado o que os apologistas dizem que é ser grandioso e porque isso seria necessário para Deus. Será que ser grandioso é ser poderoso? Moral? Sábio? Que qualidades compõem essa definição? Se for alguma destas, eu consigo conceber algo mais grandioso que o deus cristão.

Consigo conceber um ser mais poderoso que o deus cristão, capaz de interagir com sua criação de forma objetivamente verificável, em quem a crença não dependeria de fé.

Consigo conceber um ser mais moral, mais bondoso que o cristão, que ao falar de escravidão seria só para condenar, e que incluiria um mandamento que diria algo como “não possuirás outro ser humano como propriedade” ao invés de “comprareis escravos e escravas das nações que estão ao redor de vós”. Um ser que não dependeria de sacrifícios humanos para conceder perdão. Um ser que, sendo incapaz de sofrer prejuízo, seria incapaz de sentir ira.

Consigo conceber um ser mais sábio, que faz coisas das quais não se arrepende, como criar uma raça superior a si, à qual não precisa matar afogada e depois perceber que isso é errado. Até mesmo a raça humana foi capaz de produzir computadores cuja capacidade excede a humana em muitas atividades.

Consigo conceber um ser tão mais poderoso que seria capaz de dar origem a todo o universo sem sequer existir.

Se o Argumento Ontológico fosse válido, eu teria acabado de demonstrar que os cristãos acreditam em um deus falso e precisam descobrir quem é Deus, se é que ele existe. Mas o fato é que o argumento estabelece que Deus pode existir se for somente imaginado. E é por isso que ele não merece sair da mesa das crianças.

Sobre Henrique

Casado e com dois filhos lindos como os pais. Meio doido, mas legal.
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